quarta-feira, 5 de agosto de 2009

Lourenço do Rosário: "Democracia sem desenvolvimento é um fraude"*



 Em entrevista exclusiva concedida recentemente à revista Democracia e Direitos Humanos, o Professor Lourenço do Rosário vincou que os intelectuais e académicos moçambicanos se limitam a receber instruções e orientações de modelos do Ocidente, que nada têm que ver com a nossa cultura de governação.
E diz: “duvido que os políticos e intelectuais conheçam, sob o ponto de vista teórico, os fundamentos da democracia que estamos a implantar”. Aliás, para o nosso entrevistado, “democracia sem desenvolvimento é uma fraude”.

Lourenço do Rosário que, para além de académico, é igualmente Reitor do Instituto Superior Politécnico Universitário (ISPU), declarou ainda que a nossa intelectualidade está muito virada para a vida urbana e para as tecnologias que a ligam ao centro e a desligam da periferia. Nesta entrevista ao nosso periódico, Lourenço do Rosário não poupou críticas à comunicação social da qual, parafraseando Mia Couto, diz que “o jornalismo em Moçambique é o hino à preguiça”. Ei-lo, a seguir, na primeira pessoa:


Democracia e Direitos Humanos (DDH)Muitos estudos e ideias de intelectuais e políticos moçambicanos referem que a “democracia em Moçambique tem dificuldades de se implementar, devido ao elevado índice de analfabetismo”.
- Considerando esta tese como parte da nossa realidade social, como é que o país pode capitalizar os conhecimentos locais e/ou informais das comunidades, para que a democracia ganhe uma outra dinâmica social?
Lourenço do Rosário (LR) – Penso que o grande problema está exactamente naquilo que nós entendemos como democracia, porque a democracia formal que nós temos nasce de um contexto civilizacional e cultural diferente do nosso. Este modelo, que nasce a partir da revolução francesa, também tinha analfabetos; por isso, na altura em que se deu a revolução francesa, os filósofos e políticos conceberam um modelo de governação que inclui os três poderes representativos, nomeadamente o executivo, o judicial e o legislativo. O parlamento, por exemplo, era representado pelo povo, pela nobreza e pelo clero, o que quer dizer que cada grupo social tinha os seus interesses representados, dentro daquilo a que se chama democracia representativa, através de classes sociais, ao invés de partidos políticos. O que se passa aqui, em Moçambique e em África, é que nós, os intelectuais e académicos, limitamo-nos a receber instruções, indicações e orientações de modelos que, naturalmente, têm muito pouco que ver com a nossa cultura de governação. O grupo de analfabetos de que me fala, por exemplo, e no nosso caso, não é um grupo amorfo, mas sim um povo organizado, com a sua estrutura de governação e que têm concepções claras de representatividade. Estas concepções não estão a ser respeitadas pelo modelo de governação que adoptamos. E mais: nem a administração colonial respeitou. De facto, a democracia formal, ocidental, não é a entendida por grande parte da nossa população, significando para nós que devemos trabalhar mais. Os nossos antropólogos precisam de não depender apenas de teorias que vem de fora, mas devem produzir teorias inspiradas na observação e pesquisa interna para, exactamente, percebermos qual é a concepção que a maioria do nosso povo tem sobre a democracia e, a partir dai, dar subsídios que pudessem melhorar este modelo de democracia que nos é imposto. Podemos, sim, dizer às estruturas de democracia ocidental: ‘vocês querem que nós nos governemos desta maneira, mas o nosso povo tem a sua forma de se governar. Tudo isto ia melhorar os problemas que nós temos, o caso da unidade nacional, que os ocidentais provavelmente não têm. Como conjugar os factores negativos que podem dificultar a unidade nacional e a problemática da democracia, atendendo a que temos fronteiras herdadas do colonialismo, somos um Estado artificial, que é preciso construir no sentido de unidade e de territorialização?

DDHNo caso de Moçambique, qual deve ser a ligação entre a democracia e o desenvolvimento?LR – Num dia o Secretariado Técnico de Administração Eleitoral fez o seu Conselho Consultivo e apontou que as eleições custariam 22 milhões de dólares. A primeira reacção que tive foi de que não temos dinheiro. E se não temos dinheiro não andemos a brincar às democracias. Não podemos pagar um produto caro, quando estiver acima das nossas capacidades.
Como somos um país sem dinheiro, então os doadores vão ter de pagar, porque até nos submeteram a essa regra de jogo. Ora bem, esses 22 milhões de dólares são um instrumento para tornar as nossas instituições capazes de transformar a nossa situação em desenvolvimento. Eu acho que este regime que nos foi imposto não faz sentido, enquanto não trouxer o almejado desenvolvimento. E o desenvolvimento tem cara, pois começa pela melhoria das condições das infra-estruturas, nomeadamente a rede viária, ferro-portuária, pontes, rede de comercialização, rede eléctrica, sistema bancário e financeiro. No mínimo, com estas condições criam-se oportunidades para o investimento que, por sua vez, se vai reflectir na melhoria das condições de vida das populações. Digo: se a democracia é sinónimo de realização de eleições, de cinco em cinco anos, então não serve absolutamente para nada, pois, democracia sem desenvolvimento é uma fraude. Democracia sim, mas que traga desenvolvimento.

DDHQual deve ser o papel/contributo dos partidos políticos e da sociedade civil na educação sobre aspectos democráticos à população?LR – Não podemos, de forma alguma, pensar que, de um momento para o outro, vamos transmitir ao nosso povo aspectos sobre democracia, que penso que mal conhecemos, pois duvido que os nossos políticos e intelectuais conheçam, sob o ponto de vista teórico, os fundamentos da democracia que estamos a implementar. Agora, pergunto, como é que nós podemos transmitir ao nosso povo aquilo que nós mal conhecemos? Estou – friso – a falar sob um ponto de vista meramente teórico, e não político. O que os intelectuais devem saber, antes, é que não somos apenas urbanos. Digo isto porque a nossa intelectualidade é muito urbana e virada para as tecnologias informáticas, e para tudo o que nos aproxima mais do centro do que, propriamente, da periferia. Significa isso que o grande problema dos países do Terceiro Mundo, os da África em particular, é serem cooptados pelo centro. Neste preciso momento, quando os intelectuais de África querem fazer uma pesquisa vão para Londres (Inglaterra) ou Nova Iorque (Estados Unidos América) consultar bibliotecas desses países, pensando-se, desta forma, que o bom intelectual é aquele que foi formado na Universidade de Oxford. Todas estas tendências fazem com que cada vez mais nos afastemos do nosso vizinho, que está aqui na Manhiça. Com este afastamento, fazemos uma espécie de terreno de ninguém ou um grande espaço vazio, onde a classe política anda perdida, porque não anda municiada. Há dias, vi e li no jornal que um membro de certo partido político não foi eleito no seu partido, pelo que quer formar o seu partido político. Este comportamento questiona-me. Qual é a sua ideologia política? Que programa ele quer apresentar? O que nós vamos esperar desse partido político que será formado? Perante este cenário da classe política parece que estamos perante indivíduos que procuram lugar através da tentativa de conquista do poder, porque quando se chega ao poder há garantia de que se vai ter benefícios. Então, parece-me que todos os políticos que estão fora do poder se envolvem em acções para a conquista do poder, e não fazer crescer a democracia representativa dos partidos políticos, porque estar na oposição é uma grande responsabilidade, pelo seu carácter educativo, crítico e inspeccionista, ajudando, entretanto, a crescer o patriotismo na diversidade de opiniões. Então, não vejo muito, aqui, que, nas condições actuais, os académicos e intelectuais possam ajudar os políticos a desenvolver acções, de modo a consolidarem esta democracia.

DDH - Nalguns países do mundo, as manifestações democráticas ou emissão de comunicados de imprensa contra certas políticas antagónicas ao desenvolvimento são concebidas e desenhadas por professores e estudantes do ensino superior, em particular os das ciências sociais e humanas.
- No caso concreto de Moçambique, por que é que temos verificado uma “paragem cívico-política” dos professores e intelectuais?
LR - O intelectual não tem, necessariamente, de fazer o papel de oposição política ao poder. A questão não deve ser posta desta maneira. Pelo que me parece, em primeiro lugar, o problema começa na comunicação social ( CS). A nossa CS, de uma forma geral, não aprofunda as questões, salvo raras excepções. Ou seja, ela prefere a intriga política à investigação. A nossa CS publicita mais os escândalos e, muitas vezes, não forma nem educa os cidadãos, por forma a monitorar positivamente a opinião pública. Segundo, temos as universidades que são espaço de debate de ideias e onde se forjam indivíduos que, futuramente, terão algum papel na sociedade. O grande problema que se coloca é quais são os objectivos das pessoas que entram nas universidades. Nós ainda estamos num grande défice, entre a procura de lugar na universidade e a capacidade que as mesmas têm para oferta, por um lado. Por outro, mesmo o Aparelho de Estado está sistematizado de modo a valorizar muito, em termos salariais, o diploma universitário. As pessoas entram rapidamente, para sair com um diploma e melhorar a sua vida. Portanto, neste momento, a universidade ainda não é um espaço onde as pessoas se sentam e debatem ideias, saindo com propostas exequíveis. Há algumas tentativas, mas ainda são frágeis. Mas não me parece a mim que os intelectuais estejam calados e que não tenham condições nem termos de articulação com a comunicação social, para se poder aprofundar o debate nacional, pois a vida nacional deve estar em constante debate, para que se produzam informações elaboradas sistematicamente para a opinião pública. E não é isso que acontece, os debates são começados e largados. Em jeito de conclusão, tanto na comunicação social como nas universidades, não há a prática de aprofundamento das coisas. Nestas duas instituições, há um défice bastante grande quanto a isso. No nosso seio há preguiça mental para aprofundar os debates. Mas, sou optimista. As coisas vão mudar. Penso que nos próximos dez anos as coisas não vão ser iguais.

DDH- O que é estará por detrás desse comportamento ou atitude na comunicação social?LR – Olha, ia talvez citar o Mia Couto que, num encontro, disse que o que se passa com o jornalismo em Moçambique é o hino à preguiça: cria uma santa aliança entre os jornalistas, o público e os políticos. Porque o jornalista, como tem preguiça de aprofundar e analisar os problemas, faz um pacto com o político. Este, mesmo que não tenha importância alguma na sociedade, merece destaque na terceira página de um jornal, por exemplo. O político, por ter sido destacado na terceira página, acha-se importante e nós, o público, achamos que o político fulano é importante porque o jornal o destacou logo numa página nobre. Não sei se este comportamento da comunicação social é causado pelo baixo nível académico ou por preguiça; ou ainda por uma cultura de escândalos, apenas. Por exemplo, a zanga entre Wehia Ripua e Yaqub Sibindy não tem uma relevância nacional tal que possa ser destacada na comunicação social. Mas, entretanto, vejo que a zanga entre o Presidente da República, Joaquim Chissano, e o Presidente da RENAMO, Afonso Dhlakama, deva merecer questionamento: sobre as suas origens; quantas vezes já se zangaram; quais as implicações na vida nacional e consequente destaque.
DDHHá entre nós medo de debater ideias por causa do sistema...LR – Como é que queremos democracia com medo? Democracia é, exactamente, a pessoa não ter medo; é podermos falar e os outros serem capazes de nos ouvir e debatermos em conjunto as ideias na tolerância. A tolerância e o direito à opinião é que permitem liberdade de expressão e de pensamento. Eu posso ser membro de um partido político, mas como cidadão tenho coisas sobre as quais tenho obrigações sociais para debater (ideias). O medo está nas cabeças das pessoas que não conhecem os seus direitos. Então, vamos voltar à questão da preguiça. Quantos neste país que sejam professores universitários, jornalistas e intelectuais, no geral, conhecem, efectivamente, os seus direitos?

DDHComo é que o cidadão médio moçambicano é intelectualmente?LR – Acho que, de uma forma generalizada, o cidadão médio moçambicano é ignorante. Há pessoas que acabam o curso universitário sem que nunca tenham entrado numa biblioteca. Há pessoas que nunca leram um romance. Já não digo um poema. Há indivíduos que são grandes figuras aí que nunca leram um livro. Como é que indivíduos destes podem ser intelectuais? Intelectual de quê; intelectual de conversa de café. Eu, pessoalmente, tenho um trabalho de investigação com dados qualitativos e quantitativos que melhor fundamentam esta minha posição.

DDH A exclusão política pela Frelimo no sistema de governação é uma realidade. Deste modo, até que ponto a democracia está ameaçada?LR – Bom, primeiro temos o aspecto histórico. A Frelimo, em 1994, após a vitória nas eleições gerais sobre a Renamo e outros partidos de oposição moçambicana já vinha governando o país desde o ano de 1975, com toda uma cultura de partido único e com experiência e segredos de governação. Então, era difícil incluir outros partidos no governo ou seus quadros, mesmo com competência reconhecida publicamente. O partido no poder precisava de arrumar a casa, por ter entrado numa nova regra de jogo (democracia multipartidária). Entendo daí que era difícil para a Frelimo fazer um governo de unidade nacional. Além disso não só se inclui por razões de competência de quadros dos partidos de oposição, mas também é preciso que o partido vencedor tenha confiança sobre tais quadros a incluir. Entretanto, acredito que se as eleições tivessem sido ganhas pela Renamo, o governo de unidade nacional teria sido formado até com iniciativa da própria Renamo, porque nessa altura a Renamo provinha de uma guerrilha e ainda não era um partido político estruturado que conhecesse os segredos de governação.

DDHEm 1999, porque é que a Frelimo não incluiu outros partidos?LR – Aqui, entendo que há o aspecto conjuntural. Em 1999, tinhámos a Renamo e os partidos políticos pequenos, que sozinhos não tinham hipótese de ultrapassar a barreira dos cinco por cento para, pelo menos, se fazerem representar ao nível parlamentar e a Frelimo, mais uma vez, foi às eleições sem se juntar a ninguém. Isso tem a ver com a cultura de auto-suficiência de concorrer aos pleitos eleitorais e se houver alguma necessidade de inclusão deve ser sempre a posterior. Não sei o que vai acontecer nas próximas eleições previstas para este ano, mas vejo ser muito difícil a Frelimo fazer acordos prévios de coligação com partidos. Acredito que pode fazer depois das eleições. Mas, à medida que a Frelimo perder paulatinamente o peso político na sociedade moçambicana poderá coligar-se ou incluir outras forças políticas. Penso que se não tivéssemos tido o conflito armado dos 16 anos, onde o processo de transformação do regime socialista para o de democracia tivesse sido normal acredito que a Frelimo chamaria individualidades com competência reconhecida na sociedade para o governo, sem que fossem seus membros.
DDHO PCA do BCI, Magid Osman, numa comunicação para a AMECOM em 2002, apontou que nos países do terceiro Mundo, como Moçambique, os detentores do poder económico-financeiro investem os seus recursos em áreas improdutivas (compram mercedes, mansões e fatos de luxo...). Como é que analisa esta questão?LR – Normalmente, estes cidadãos de que o Doutor Magid Osman fala vem de uma cultura de gestão estatal que, tendo falido as suas empresas, tiveram que enfrentar a cultura de gestão privada. E porque aqui há regras de jogo próprias caíram. O indivíduo privado que começa com o dinheiro privado do banco que sabe que deve pagar não vai comprar Mercedes. Ele deve produzir dinheiro para pagar o empréstimo. Quanto a isso não sou pessimista. As pessoas estão a mudar para o melhor. Em Moçambique temos empresários que dia e noite lutam para desenvolver seus investimentos, preferindo liquidar suas dívidas a comprar Mercedes, mansões e fatos de luxo.

Biografia de Lourenço do Rosário
Lourenço do Rosário nasceu em 1949, em Marromeu, província de Sofala, Moçambique.
É licenciado em Línguas e Literaturas Modernas, variante Português/francês, pela Universidade de Coimbra, em Portugal, e Doutorado em Letras, especialidade de Literaturas Africanas de Expressão Portuguesa, pela mesma Universidade, desde Janeiro de 1987.
É igualmente Doutorado em Estudos Portugueses, com especialidade em Estudos Africanos, pela Universidade Nova de Lisboa, Portugal.
Publicou seis livros de literatura: “A Narrativa Africana de Expressão Oral” (1989); “O Conto Africano – Da Oralidade à Escrita” (1994); “Singularidades” (1996); “Contos Moçambicanos do Vale do Zambeze” (2001); “Dia de Festa” (2005); “Histórias Portuguesas e Moçambicanas para Crianças” (2005) e dezenas de ensaios e prefácios.

*Esta entrevista consta do livro SINGULARIDADES II, de autoria do professor moçambicano Lourenço do Rosário, publicado neste segundo semestre de 2007, sob chancela da Editora Escolar. Originalmente, a entrevista foi publicada na revista Democracia e Direitos Humanos, em Abril de 2004, onde fui redactor-principal, entre 2003 a 2005. Em SINGULARIDADES II, as perguntas e respostas dos números 6 a 10, não se encontram inseridas, talvez por a segunda parte da entrevista ter sido publicada em Maio do mesmo ano ou por não ter sido encontrada pelos organizadores do livro, para efeitos de publicação. Josué Bila foi fondutor da entrevista. Republic0-a aqui para melhor armazenar alguns dos trabalhos, no bantulândia.

 Fonte da foto criticasereflecoes.blogspot.com

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