sábado, 25 de abril de 2009

Custódio Duma: Advogados moçambicanos têm baixa compreensão de direitos humanos

O www.bantulandia.blogspot.com continua em busca de iguarias de direitos humanos. Mais uma vez, convida o estimado leitor para se deliciar em sua mesa. Por isso, na entrevista que se segue compreende-se que ser advogado não é sinónimo de saber temas sobre direitos humanos. Com efeito, o blog traz, hoje e agora, o já conhecido advogado em direitos humanos, o moçambicano Custódio Duma*, o qual usando do seu direito à fala denuncia: “Alguns advogados continuam a pensar que direitos humanos só servem para defender bandidos ou beneficiar a oposição política do país”. Em sua experiência advogatícia afirma não conhecer caso algum em que um cidadão moçambicano tenha colocado o Estado à barra do tribunal, exigindo o direito à alimentação, saúde, educação, infantário, habitação ou outros direitos similares. Siga a entrevista conduzida por Josué Bila

Bantulândia - Qual tem sido o papel do advogado moçambicano na defesa dos direitos humanos?
Duma - Olha, existe, em Moçambique, cerca de 600 advogados. Mais de metade desses advogados moram na cidade capital do país, Maputo. Há províncias com um só advogado, como é o caso de Tete, Niassa, entre outras. Mesmo assim, cerca de metade desses advogados não exerce a profissão. Dos advogados que exercem a profissão, são pouquíssimos que entendem de direitos humanos, sendo que quando me perguntas qual é o papel dos advogados moçambicanos na defesa de direitos humanos, na prática, digo nenhum. Porém, reconheço o papel dos advogados ligados às organizações de direitos humanos e alguns poucos ligados à Comissão dos Direitos Humanos na Ordem dos Advogados. O papel desses poucos tem sido de garantir o acesso à justiça ao cidadão, uma justiça efectiva e de qualidade.

Bantulândia – Diz que são pouquíssimos os advogados moçambicanos que entendem de direitos humanos. Então, desses pouquíssimos, qual é o nível de conhecimento de direitos humanos?
Duma - É muito baixo; no geral, é muito baixo, embora um e outro, principalmente os que estão ligados às organizações da sociedade civil, tenham lucidez em relação a matéria. Na verdade, o conceito de direitos humanos, em Moçambique, ainda está em construção e, em alguns casos, são os próprios advogados que o torcem ou o desvirtuam.
Alguns advogados continuam a pensar que direitos humanos só servem para defender bandidos ou beneficiar a oposição política do país. É triste saber que advogados há que pensam desta maneira.

Bantulândia - Por que advogados moçambicanos pensam que direitos humanos só servem para defender bandidos e oposição política?
Duma - Olha, na verdade essa percepção não é só de alguns advogados; é de uma boa parte da sociedade. Isso acontece porque ainda não perceberam o verdadeiro conceito de direitos humanos, que é o básico; só depois disso é que é possivel perceber que os acusados de terem cometido crimes também têm direito à assistência jurídica.

Bantulândia - É comum que advogados moçambicanos utilizem instrumentos internacionais de direitos humanos ratificados por Moçambique?
Duma - Não é comum.

Bantulândia - Por que não é comum?
Duma – Não sei bem o porquê de não ser comum que advogados moçambicanos se utilizem de instrumentos internacionais de direitos humanos. Contudo, acho que é por não os conhecerem bem ou porque eventualmente os juizes simplesmente podem ignorar os argumentos construidos pelos advogados, inspirados nos tais instrumentos.

Bantulândia - Conhece algum caso em que um cidadão moçambicano, sem recursos financeiros, colocou o Estado à barra do Tribunal, exigindo direito à alimentação, saúde, educação, infantário, habitação ou outros direitos similares?
Duma - Não conheço caso parecido. Mas, conheço casos de cidadãos que exigem compensações por maus tratos de agentes públicos e detenções ilegais.
Penso que os cidadãos não intentam acções contra o Estado exigindo alimentos, habitação, saúde ou outros direitos, porque não sabem que isso é possível. É pura ignorância. Em segundo lugar, porque a justiça moçambicana custa muito caro ao cidadão.

Bantulândia - Como os casos de maus-tratos chegaram ao Tribunal?
Duma - Os casos que conheço chegaram ao Tribunal, através das ONGs de direitos humanos, concretamente a Liga Moçabicana dos Direitos Humanos. Pessoalmente, conheço 7 casos, dos quais três tiveram desfecho favorável aos cidadãos reclamantes.

Bantulândia - Qual é o nível de eficiência da Ordem dos Advogados de Moçambique ou Fundo de Patrocínio e Assistencia Jurídica, para que os cidadãos se utilizem deles?
Duma – Honestamente falando, eu penso que o nível de eficiência da Ordem e do IPAG ainda é baixa. A Ordem só agora é que está a desenhar o seu plano estratégico e esperamos que a resposta a essa matéria seja positiva. Já o Instituto de Patrocínio e Assistência Jurídica (IPAJ) ainda não conseguiu mostrar a razão de sua existência. Exemplo: semana passada, em Pemba (Cabo Delgado), os reclusos responderam ao digno dirigente do IPAJ, Pedro Nhatitima, que não conheciam aquele órgão do Estado. Isto aconteceu numa visita que ele realizou aquando da reunião nacional do IPAJ. Esse posicionamento dos reclusos é repetido por quase todo o país.

Bantulândia - O professor brasileiro Fábio Comparato diz que o judiciário viola os direitos humanos, quando, por meio da norma legal, manda aprisionar cidadãos em cadeias com condições indecentes.
Como advogado, qual é o seu posicionamento?
Duma - Primeiro, concordo plenamente com a colocação do professor Comparato. Segundo, o Direito não deve ser usado para retirar a dignidade do ser humano. Sempre que isso estiver para acontecer é melhor não aplicar esse Direito. Afinal de contas, o Direito é um meio à Justiça e não um fim em si. O fim do Direito deve ser sempre a Justiça. Portanto, aprisionar cidadãos em cadeias degradadas, sem condições higiénicas e de sociabilidade carcerária de qualidade é, sim, violar direitos humanos.

Bantulândia - O que deve ser feito para se melhorar os direitos dos reclusos?
Duma - Em primeiro lugar, é preciso aperfeiçoar a política pública concernente e começar a pensar-se em penas alternativas. Em segundo lugar, é preciso melhorar, através de investimentos, as infra-estruturas prisionais que são uma herança colonial, sem esquecer de melhorar as condições dos agentes carcerários.
Mas, também é preciso lembrar aos juizes que nem sempre é necessário encarcerar o cidadão. Se fores a reparar, as prisões em Moçambique estão repletas de cidadãos a cumprir penas de 1 a 3 meses, prisões essas que poderiam ser convertidas em multa.

Bantulândia - Conhece algum caso em que um determinado juiz, em nome de regras mínimas de tratamento de reclusos, internacionalmente reconhecidas, tenha mandado um cidadão cumprir a pena em casa, por as cadeias locais não terem condições mínimas de reclusão?
Duma - Salvo minha ignorância, nunca ouvi falar em caso idêntico. Entretanto, conheço vários casos de penas máximas aplicadas desnecessariamente.

Bantulândia - Qual é a expectativa que tem da recém-criada Comissão Nacional de Direitos Humanos?
Duma - A Comissão ainda não foi criada. Somente a Assembleia da República aprovou a Lei que a cria, mas o Conselho Constitucional a chumbou por a considerar inconstitucional. Ora, a sociedade civil moçambicana, em tempo oportuno, já tinha chamado à atenção sobre os aspectos detectados como inconstitucionais pelo Conselho Constitucional. Infelizmente, o Governo e a Assembleia da Républica preferiram ser arrogantes e unilateriais a contribuir para instituições mais democráticas, mais livres e mais justas, objectivando a continuação da construção do Estado de Direito Democrático em Moçambique.


Bantulândia - Fala, em linhas gerais, do papel da Liga dos Direitos Humanos na defesa de direitos humanos.
Duma – olha, em termos gerais posso afirmar categoricamente que se a Liga dos Direitos Humanos não existisse não poderiamos falar de acesso à justiça para populações pobres. A LDH, com fundos dos seus parceiros, está a realizar o trabalho que deveria ser feito pelo Estado através do Instituto de Patrocínio e Assistência Jurídica ou outros. Falar do papel da LDH na defesa de direitos humanos deve nos lembrar que esta foi uma das primeiras, senão a primeira a abordar abertamente sobre esses conteúdos no país, tanto que muito conhecimento sobre a matéria no país tem sido produzido a partir da LDH.

*Custódio Duma é advogado e defensor de direitos humanos, trabalhando na Liga Moçambicana de Direitos Humanos. Ex-intercambista em Direitos humanos pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Conectas Direitos Humanos (São Paulo), em 2005, com financiamento da Open Iniciative Southern Africa.

sábado, 18 de abril de 2009

Direitos Humanos e Políticas Públicas


Por Josué Bila
A institucionalização aberta de Direitos Humanos em Moçambique, em 1990, transformou o país africano num palco de debates sobre direitos e liberdades individuais, ainda que essa discussão fosse fragmentada e retalhada, por causa da experiência nova e conhecimentos limitados da maior parte de autoridades e agentes do Estado e da sociedade civil.

quarta-feira, 8 de abril de 2009

António Gonçalves em entrevista: A educação moçambicana é para a manutenção do status quo

O bantulândia traz de volta o especialista em políticas de educação, o moçambicano António Gonçalves*. Desta vez, Gonçalves debate, em entrevista, sobre direitos humanos e educação moçambicana. Diz ele: “Nos livros de educação cívica e moral, por exemplo, existe um cheirinho dos direitos humanos. Mas, a maior ênfase é dada aos deveres dos alunos. Em fim, penso que estamos perante uma educação subjectivadora, usando os termos de Silvio Gallo, aquela que mais contribui para a manutenção do Status Quo”.
O entrevistado lembra que nos discursos oficiais sobre a educação em Moçambique, como por exemplo, o decreto 16/2000, foi enfatizado a necessidade de a educação moçambicana formar cidadãos com elevado espírito de patriotismo e de civismo. “Veja, não está em causa a formação de cidadãos com consciência dos seus direitos, mas, conscientes do patriotismo e do civismo. Ora, eu me pergunto: formar patriotas é o mesmo que formar cidadãos?”, questiona.
Sobre a ligação entre educação em direitos humanos e respeito às normas do Estado de Direito Democrático, Gonçalves respondeu que “podemos incorrer no risco de tornar a educação em direitos humanos numa educação moral se vermos apenas por esse ângulo do respeito às normas. A consciência dos direitos humanos e a necessidade do seu respeito também exige que se respeitem as normas justas de um Estado democrático. Assim, critica um dos maiores filósofos já registados na História da Humanidade, o pensador Sócrates: “Penso que repetir a máxima de Sócrates, segundo a qual, a Lei, mesmo que seja injusta, é da minha cidade, por isso tenho de segui-la, pode levar a um desastre social: conformismo e passivismo, cada um tornando-se desconhecido de si próprio”. Sintetiza, igualmente, que a consciência dos direitos humanos, que também implica nos deveres, deve levar a uma crítica às normas injustas e seguirem-se as normas justas, elas que garantem a existência, vivência e convivência pacífica entre os seres humanos. “É uma utopia, mas vale a penas acreditar na consciência possível”, considera.
Antes que a sua curiosidade se esgote, desça pelas linhas que se seguem.
Entrevista conduzida por Josué Bila

Bantulândia - Em seu artigo, recentemente publicado aqui http://bantulandia.blogspot.com/2008/11/o-direito-educao-bsica-e-omisso-do.html revela que o Estado moçambicano é omisso quanto ao seu dever de oferta e gratuidade da educação básica, enquanto um direito humano.
- Com que bases faz essa afirmação?
Gonçalves - Bem, naquele texto, eu fiz um exercício hermenêutico em torno da legislação moçambicana que versa sobre a educação. Basicamente consultei, conforme expus no texto, as duas Constituições de Moçambique, designadamente a de 1990 e a de 2004 e também a Lei 6/92 de 6 de maio de 1992. Veja que eu faço uma confrontação entre os compromissos internacionais em torno da educação, principalmente, a básica e as ações concretas do Estado moçambicano. Em nível internacional, já nos finais do século XIX, a elite dirigente, em decorrência das lutas do movimento dos trabalhadores, ampliou o direito à educação, afirmada na Declaração Universal dos Direito do Homem de 1789. A educação pública, também reclamada por Kant e Hegel, como direito do cidadão, era o dever do Estado ofertá-la. A discussão filosófica sobre a educação, desde a modernidade, em que pesem as divergências, rumou por esse entendimento: direito do cidadão e dever do Estado. Neste início do século, em face da persistência da pobreza, por um lado, e do avanço das tecnologias de informação e comunicação, por outro, nos debates internacionais tem-se afirmado que dificilmente se vencerá a pobreza e se competirá neste mundo globalizado com baixos níveis de educação da população de um país. Assim, aos Estados, era-lhes incumbido a tarefa de oferecer a educação pública, no mínimo, até o nível básico, assumindo-a como dever, em resposta ao direito humano à educação. Mas, o que acontece na legislação moçambicana, desde a Constituição de 1975 (art.34), é o contrário: a educação foi sempre concebida como Direito e Dever do Cidadão e, mais tarde, da Família.

Bantulândia - Por que o Estado moçambicano não assume, em nível de Lei, a educação como parte fundamental dos Direitos Humanos?
Gonçalves - Pessoalmente, não tenho resposta a essa pergunta pertinente. Somente a sociedade política moçambicana pode dar uma melhor resposta sobre o que eu chamaria de “demissão” do Estado no campo do direito à educação.Talvez o paternalismo que marcou o pós-independência tenha levado a esse marasmo na educação.

Bantulândia - Qual é a relação entre violação ao direito humano à educação e a fraca qualidade de ensino/educação?
Gonçalves - Não sei o que exatamente você quer dizer com violação do direito humano à educação. O Estado moçambicano oferece a educação, mesmo que em dose homeopática, parafraseando Adam Smith. Como, por nível de Lei, o mesmo Estado não se pronuncia, também não se vê obrigado a melhorar a qualidade do ensino/educação. O acesso a uma educação com qualidade social também faz parte do direito humano à educação. O erro é pensar que uma vez disponibilizando a escola e os professores, está resolvido o problema do direito humano à educação. É necessário questionar se essa educação que se oferece à nossa juventude tem uma qualidade social, garante um mínimo de aprendizagem de modo a que a criança, concluindo as sete classes obrigatórias, tenha o domínio efectivo dos códigos de escrita, sabe se expressar corretamente, interpreta e compreende o seu contexto; sabe fazer as contas, escreve corretamente, lê um texto básico e entende o que nele está escrito. Se esses indicadores da qualidade social da educação não são aferidos em um determinado sistema de ensino, então, podemos afirmar que ocorre uma violação do direito humano à educação. O que nos diz a nossa educação? Ainda não temos um Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica, a não ser os exames finais. Estes ainda não podem constituir-se em indicadores da qualidade da educação. Mesmo assim, o número de reprovações diz alguma coisa.
Bantulândia - Entende-se que uma educação de qualidade cria cidadãos conscientes de seus direitos e deveres, participantes do desenvolvimento do país e organizados para a Agenda Nacional. Haverá interesse das elites político-governamentais moçambicanas em viabilizar uma educação promotora de cidadãos/cidadania?
Gonçalves - Existe uma boa discussão no campo da Sociologia sobre o termo elites. Não vou entrar nessa discussão, mas sim, sublinhar que não são apenas as elites político-governamentais que definem os rumos da educação num país. Indo direto à tua pergunta, Carlos Nelson Coutinho, no livro "Contra-Corrente: ensaios sobre democracia e socialismo", faz uma abordagem da cidadania que vale a pena se apoiar nela. A cidadania faz parte do rol dos direitos humanos, e expressa a relação de pertença de um indivíduo a uma comunidade, onde se vive esses direitos. Assim, ser cidadão implica ser sujeito de direitos e também de deveres.
Uma educação que promova a cidadania, conforme explica Silvio Gallo, é aquela que ajuda na constituição de indivíduos livres e autônomos, cidadãos ativos que tomem as rédeas da história e de suas comunidades. É aquela que forma cidadãos que pensam por si mesmos. Não basta formar cidadãos, é necessário que as pessoas exerçam a cidadania, lutando, reivindicando e conquistando os seus direitos.
Nos discursos oficiais sobre a educação em Moçambique, como por exemplo, o decreto 16/2000, foi enfatizado a necessidade de a educação moçambicana formar cidadãos com elevado espírito de patriotismo e de civismo. Veja, não está em causa a formação de cidadãos com consciência dos seus direitos, mas, conscientes do patriotismo e do civismo.
Ora, eu me pergunto: formar patriotas é o mesmo que formar cidadãos? Um cidadão que exerce a sua cidadania é aquele que, pensando por si mesmo, é capaz de questionar o sentido do termo patriotismo, tal como ele tem sido usado: o que significa ser patriota, conforme o uso do termo no discurso oficial sobre a educação? Nos livros de educação cívica e moral, por exemplo, existe um cheirinho dos direitos humanos. Mas a maior ênfase é dada aos deveres dos alunos. Em fim, penso que estamos perante uma educação subjectivadora, usando os termos de Silvio Gallo, aquela que mais contribui para a manuntenção do Status Quo. Claro que não existe um mecanicismo na educação. Nesse mundo de informação, os indivíduos possuem outros espaços de construção da cidadania que não apenas a educação escolar.

Bantulândia - Como Mocambique pode lutar contra a pobreza com uma educação de baixa qualidade?
Gonçalves - É uma das perguntas que coloquei, mesmo que indiretamente, no texto em que reflito sobre o direito à educação básica. A resposta à tua pergunta é óbvia: é difícil combater a pobreza com uma educação de baixa qualidade. Vivemos num mundo globalizado, marcado pela competitividade entre as nações. Cada país busca, através dos seus próprios mecanismos, inserir-se nesse mundo, em que a capacidade de inovação é a condição para a maior produtividade e, por sua vez, a flexibilidade se mostra como condição para a maior competividade, culminando na geração da riqueza. A capacidade de domínio dos códigos informacionais, através do acesso e uso das novas tecnologias, e uso da informação na produção de conhecimentos aplicados para a inovação, é crucial neste início de século. Em todo esse processo, a educação é um fator preponderante. Mas uma educação com qualidade social, apresentando os indicadores que acima fiz referência. Vencer a pobreza significa haver um Produto Interno Bruto elevado e, para o alcance desse, é necessário haver lucratividade que, por sua vez, está relacionada a maior produtividade. A produtividade depende da capacidade de inovação de cada país. E, para haver inovação, o grau da instrução e o tipo de educação que se oferece, por sua vez, são cruciais. Moçambique aprova neste teste?

Bantulândia - Mudando um pouco de assunto, hoje por hoje, a educação em direitos humanos é uma grande prioridade das políticas de Estados.
- Qual seria a relevância de educação em direitos humanos na sociedade moçambicana actual?
Gonçalves - Gostaria de parafrasear Hegel, quando afirma que a história é o avanço da consciência da liberdade, para responder à tua pergunta: uma educação em direitos humanos pode ser crucial para o despertar da consciência dos direitos humanos em Moçambique, em que a educação é tida como um dos pilares fundamentais.

Bantulândia - Qual é a ligação entre educação em direitos humanos e respeito às normas do Estado de Direito Democrático?
Gonçalves - As normas de um Estado democrático, em princípio, devem ser justas, voltadas à real emancipação dos respetivos cidadãos. Podemos incorrer no risco de tornar a educação em direitos humanos numa educação moral se vermos apenas por esse ângulo do respeito às normas. A consciência dos direitos humanos e a necessidade do seu respeito também exige que se respeitem as normas justas de um Estado democrático. Penso que repetir a máxima de Sócrates, segundo a qual, a Lei, mesmo que seja injusta, é da minha cidade, por isso tenho de segui-la, pode levar a um desastre social: conformismo e passivismo, cada um tornando-se desconhecido de si próprio. A consciência dos direitos humanos, que também implica nos deveres, deve levar a uma crítica às normas injustas e seguirem-se as normas justas, elas que garantem a existência, vivência e convivência pacífica entre os seres humanos. É uma utopia, mas vale a penas acreditar na consciência possível.

Bantulândia - Como elevar os valores de ética, num país em que educadores que falam com exemplos são escassos?
Gonçalves - Não sei qual a extensão do termo educadores. Os gregos defenderam o ideal da cidade educadora, ou seja, todos os cidadãos deveriam ser educadores. E a educação não pode apenas ser vista como sendo a relação de um adulto para com a criança, segundo defendeu Durkheim. Os velhos, entre eles, também se educam. Se não através da escola, como nos diz Olivier Reboul, a vida é uma grande escola. Assim, todos nós somos educadores. Ainda voltando a Aristóteles, na Ética a Nicómaco, ele afirma que certas virtudes, as chamadas “virtudes éticas” não são ensináveis, adquirem-se pelo hábito e pelo exemplo. Quando a desonestidade, o oportunismo, a lei de menor esforço, a busca fácil pela ascensão social tornaram-se paradigmas da vida vivida na cidade, o que esperar da proposta de elevação das virtudes éticas?

Bantulândia - A violência de vários tipos ofuscou espaços de ética e de respeito às normas do Estado.
- que propostas avanca para ultrapassarmos isso?
Gonçalves - Ainda bem que você coloca os vários tipos de violência, pois quando se fala nela, pensa-se, em nível de senso comum, na violência física: roubo e furtos, assaltos na via pública, em fim. Mas há outro tipo de violência que os intelectuais parecem não estarem dispostos a discuti-la. Falo, na esteira de Pierre Bourdieu, da violência simbólica. Esta talvez seja a mais grave em Moçambique, pois pode ser a partir dela que decorrem outras formas de violência que assolam o país. É difícil avançar propostas, pois, na condição de um razoável aprendiz da História da Filosofia (não me considero Filósofo), guardei bem que no dia em que houver a resposta, a Filosofia será inútil. Apenas pergunto-me: será esta a sociedade que queremos para Moçambique? Ser Ético implica em, necessariamente, respeitar às normas do Estado? A quem beneficiam tais normas?

* Moçambicano, Doutorado em Políticas de Educação (UFMG-Brasil), Mestre em Educação (UFMG) e Licenciado em Filosofia (FAJE-Belo Horizonte, MG). E-mail: ciprix@yahoo.com

sábado, 4 de abril de 2009

Elísio Macamo em entrevista: A discussão sobre direitos humanos parece-me abstrata para o contexto moçambicano

O professor universitário na Alemanha, o moçambicano Elísio Macamo*, aceitou dar entrevista** ao bantulândia, para discutir sobre direitos humanos em Moçambique, desde os tempos da criação da FRELIMO até aos dias de hoje. Ei-lo na primeira pessoa: “a discussão sobre direitos humanos parece-me abstracta demais para ser de alguma utilidade no nosso contexto. Torna-se numa posição ética que dificulta o debate político. O país precisa de política, o que pressupõe debate de ideias, e não de certezas que fecham a discussão”. Em outras perguntas cruciais, Macamo apenas respondeu: “não sei...também não sei”. A entrevista que se segue já foi, há dois anos, solicitada à escritora e ex-combatente das forças da FRELIMO, Lina Magaia, e posteriormente ao antigo reitor da Universidade Eduardo Mondlane, prof. Brazão Mazula, os quais não puderam responder favoravelmente ao pedido.

Bantulândia - A luta pela Independência Nacional, em Moçambique, significou, em si, a luta pelo direito humano à autodeterminação e demais direitos humanos.
- O que a FRELIMO (1962-1975) entendera de direitos humanos, nessa altura?

Macamo - Acho que ela entendeu os direitos humanos como a recuperação da nossa dignidade como humanos. A conjuntura política da altura, contudo, não permitia muita latitude na interpretação da dignidade. Ou se interpretava essa dignidade com referência ao liberalismo ou com referência ao socialismo. A Frelimo optou por todo um conjunto de razões que me parecem plausíveis por uma interpretação socialista. Essa opção teve, infelizmente, consequências muito graves posteriormente, pois conduziu a um sistema político muito fechado. É fácil ver isso hoje com a vantagem da retrospectiva histórica. Eu próprio não sei se não teria optado por esse tipo de interpretação. Mesmo Mondlane que tinha um espírito muito aberto sucumbia cada vez mais a esse tipo de interpretação.

Bantulândia - Que temas de direitos humanos foram mais discutidos no seio da FRELIMO, de 1962 a 1975?
Macamo - Não sei.

Bantulândia - Em termos de implementação de direitos humanos, o que significaram as zonas libertadas onde terão sido implantadas escolas, cuidados de saúde, campos agrícolas?

Macamo - Segundo a historiografia oficial, as zonas libertadas significaram a materialização do sentido e de dignidade que estava na base da luta. Precisamos, contudo, de mais trabalho de investigação para percebermos isso melhor.

Bantulândia - Alcançamos a Independência, em 1975, e, em 1977, Moçambique, sob a direcção do já partido FRELIMO, adopta uma linha de orientação marxista-leninista. Esta linha, pelo menos, teria mostrado que é amigo dos direitos económicos, sociais e culturais e inimigo, não raras vezes, dos direitos civis e políticos.
- Internamente, como é que o partido FRELIMO conduziu este processo, tendo em conta que os direitos humanos são indivisíveis e interdependentes?
Macamo - Não concordo com a distinção que faz. Penso que um indivíduo pode ter orientação marxista-leninista e, mesmo assim, se interessar por direitos civis e políticos. É difícil, mas possível. Não sei como o partido Frelimo conduziu o processo internamente.

Bantulândia - Quais foram as maiores convergências na condução da linha marxista-leninista, no seio da FRELIMO? E quais as divergências?
Macamo - Não sei. Suponho que entre 1970 e 1980 tenha havido grande convergência no seio da Frelimo quanto ao projecto marxista-leninista. É preciso ver que estes são anos de grandes vitórias: operação Nó-Górdio; independência; bom desempenho económico até 1980; Zimbabwe. As grandes vitórias sempre criam coesão. Depois disso começaram os desaires e os consensos ruíram. As tensões anteriores voltaram à superfície, creio.

Bantulândia - Segundo notas da revista Tempo (1985), a FRELIMO reconhecia, através do ex-ministro da Defesa Nacional, Alberto Chipande, o “espírito de deixa-andar”.
- Qual é a diferença entre o espírito deixa-andar do tempo do partido-Estado e do actual Estado de Direito Democrático?

Macamo - Não sei.

Bantulândia - Qual é a relação entre “espírito deixa-andar” e o custo de vida?
Macamo - Também não sei.

Bantulândia - Voltamos a 1985: Chipande reconheceu, ainda, que “nós (Governo da FRELIMO) conduzimos mal o processo” de desenvolvimento de Moçambique, por causa do espírito de deixa-andar. O que significava esse reconhecimento de um quadro sénior do Governo e da Frelimo, nessa altura?
Macamo - Também não sei. Não conheço o contexto em que Chipande fez essas afirmações e nem sei como ele as fundamentou.

Bantulândia - O jornalista Aquino de Bragrança, citado por professor Brazão Mazula, no livro Educação, Cultura e Ideologia – 1975-1985, descreve, nos seus escritos, o que chama de “desmoronamento moral e silencioso” do partido FRELIMO, nos primeiros 10 anos da Independência Nacional.
- Por que Aquino de Bragança chegou, nessa altura, a essa conclusão?

Macamo - Não faço a mínima ideia.
Bantulândia - Em que situação moral se encontra o partido FRELIMO, hoje?
Macamo - Acho que isso só os membros da Frelimo podem dizer.

Bantulândia - Quais são as áreas de direitos humanos em que o Governo moçambicano deveria investir mais?
Macamo - Eu acho a discussão sobre direitos humanos menos interessante do que uma discussão mais fundamental sobre os pressupostos da nossa ordem política. Pessoalmente, estou mais interessado na questão de saber até que ponto a nossa classe política, mas também a nossa massa intelectual tomam a sério o desafio que nos foi imposto pela nossa própria história de garantirmos a dignidade humana no nosso país. Até que ponto é que o nosso sistema político garante isso? O que faz para alargar os espaços de afirmação desta dignidade? Que critérios identificamos nós como fazendo parte desta dignidade? A discussão sobre direitos humanos parece-me abstracta demais para ser de alguma utilidade no nosso contexto. Torna-se numa posição ética que dificulta o debate político. O país precisa de política, o que pressupõe debate de ideias, e não de certezas que fecham a discussão.

*Elísio Macamo. (Universidade de Bayreuth/Alemanha
** Conduzida por Josué Bila